12.12.16

Brevemente...

O volume Famosas Últimas Palavras junta três livros que refazem o caminho poético de Luís Filipe Cristóvão. A cada um deles, um tema que serve apenas como despiste de uma leitura de pré-conceitos. Na “Fala do Artesão” são os cheiros da terra, entre o rural e o marítimo, que nos invadem a boca. Boca que explode em “Fronteira”, numa dimensão mais marcadamente política dos seus escritos. Tudo se encerra com “Casas Funerárias”, um pequeno livro de morte, onde o título do conjunto acabará por soar a inevitável ironia de quem sabe não vir a ser nem famoso, nem escutado, nem morto.

Brevemente, na Editora Jaguatirica


30.9.16

MCMLXXIX

Como a luz, num caixão, escondida para sempre, 
ou as palavras engolidas com um copo de água, 
depois das refeições, até que o silêncio se instale
por dentro e não saibas sequer como falar, no dia
em que finalmente entendes o que tens para dizer. 

22.8.16

Porta

Uma porta é uma porta, dizes tu quase calado, enquanto
tentas perceber se há barulho do outro lado, uma voz ou
um movimento, qualquer coisa que denuncie a existência
de uma razão de ser para a porta, aquela porta, fechada

à tua frente. Porque se bem te lembras uma porta é uma
porta, para teres a certeza procuras no dicionário e lês, 
entrar, sair, acesso, admissão, solução, expediente, tudo
coisas para passar, onde há uma porta há o deste lado e

o do outro. Mas tentas entender e para esta porta não há
sinal de nada. Já perguntaste até ao médico se não será
um problema do ouvido, mas não. Tudo está certo com a

audição, com certeza será questão de entendimento, eras
tu e a bata branca e um sorriso que se prepara para buscar
a razão para, de entre todas as portas, a tua, estar fechada.

19.8.16

Vintes de agosto

Aos vintes de agosto chovia em Santa Cruz e
nem sequer havia quem fosse connosco andar
de bicicleta ou jogar à bola na areia, como nos
outros dias de verão em que ainda não eram

vintes, nem talvez agosto, mas também chovia
em Santa Cruz. Eu olhava o vazio pela janela
do quarto e voltava a deitar-me no chão, umas
caricas entre os dedos, a inventar jogos que

ficavam registados em cadernos com os nomes
dos jogadores, os resultados, uma passagem do
tempo em versão acelerada que nem os vintes

nem agosto conseguiam parar. Uns dias depois,
voltaria ao calor e aos amigos da escola, mas o
olhar ficaria para sempre preso no vazio da janela.

9.8.16

35 graus em Santa Cruz

Como um gelado que se derrete sobre a
mesa da esplanada na tarde de verão onde
os olhos se fecham e as vozes que se ouvem
são apenas uma repetição de outras tantas 

férias que já só têm lugar na memória. Lá mais
para cima, um casal de poetas esconde-se à
sombra, comendo pequenas folhas de alface
e seguindo, à risca, as indicações do médico

que aconselhou o consumo moderado de álcool
e açúcar. Caipirinhas nunca mais, confessa o
empregado de mesa, enquanto quatro senhoras

sorriem e pensam como seria bom voltar a ter
dezoito anos para poder olhar aquele jovem
sem culpa. Como um gelado que se derrete. 

8.8.16

Português sem filtro

Com um martelo quebra as montras onde vê
a sua própria imagem refletida, incapaz de fazer
as pazes com os seus próprios falhanços. Exige
dos outros aquilo que não consegue para si próprio, 

ensaia o discurso de pai inserindo sentenças nas 
cabeças calvas dos que se dignam a ouvi-lo. Fala, 
a maior parte do tempo, sozinho, sem ninguém que 
se determine a cumprir-lhe as indicações ou a beber-lhe 

os conselhos. Não entendeu ainda que com martelos 
não se caçam borboletas, nem se escrevem poemas 
em folhas brancas de computador. Não entendeu, 

sequer, que o lá fora dos velhos clássicos é ainda 
mais seco e inócuo do que o seu próprio comércio, 
apenas filtrado pelo tempo - o que tudo cura.

Mínimos Olímpicos

Não há como evitar a confusão, nem como dormir
sossegado na aldeia olímpica em que se transformou
esta parte da cidade. Não há já braçadas que nos
livrem de uma sorte que nos empurra a competir

com os nossos próprios fantasmas, não há corrente
de bicicleta que não salte sobre o empedrado onde
antigamente desenhávamos apenas o caminho
para as férias. Não há como evitar línguas obscuras,

nem como perceber todas as mensagens, não nos
prepararam para que os jogos fossem tão mais
exigentes para nós próprios do que para aquilo

que se vai repetindo em slow motion na televisão.
Não há como evitar a confusão, pensamos nós,
falhando os mínimos determinados pela federação.

O construtor

Ele já sabe o que é estar às portas da
morte sem que ninguém o deixe entrar,
tal como sabe como se escreve mil vezes
o mesmo poema até que tudo lhe pareça

muito mais dor do que a própria dor que sente.
Ele já correu pelas escadarias da mente as
maratonas do desejo e entende perfeitamente
que do silêncio só pode nascer incompreensão

ou outra qualquer coisa que nos impeça de crescer.
Gostar sozinho parece bonito, como um quadro
grande na parede de um museu, mas que nada

diz ao artista que não seja do passado das coisas
como elas podem ser vividas - de mãos e braços
abertos para a complexa construção do amor.

2.8.16

O caminho

Se estás sempre a aprender, porque nunca
aprendes, pensas tu com o peito inquieto e
a boca seca, a garganta que dói, o sol já te
queima por dentro e ainda nem começou bem

o verão. Se o mundo se constrói pela palavra, 
porque estão estas sempre a derrubar-te, seja
do poiso incerto onde te ergues, seja do chão 
pantanoso que pisas, a cada dia onde ainda te

procuras sem nunca, nunca, te encontrares. Se
o resto do caminho vai ser feito apenas para que 
morras devagar, as flores deixa-as ficar quietas no 

seu canteiro, não as arranques nem guardes num 
vaso, as cerimónias não nos servem de nada, se o 
resto do caminho vai ser só o que poderia ter sido.

30.7.16

O fotógrafo aprendiz

Para o Afonso Faustino

Preferir a gradação da noite, onde os contrastes 
entre negro e branco se evidenciam naturalmente, 
enquanto se aprende a desfocar os cabelos longos
daquela que corre sem parar pelo jardim, agora

invadido por uns quantos acordes eletrónicos e 
luzes metálicas, a sublinhar azuis ou vermelhos
apenas evidentes ao olhar do fotógrafo aprendiz.
Assim se inicia a história de um mundo, todos os 

dias uma vez mais, quando alguém tem catorze 
anos e todas as certezas que o tempo nos pode 
dar, sem procurar ainda, fora da lente, um outro 

matiz, um outro olhar, que se esconde em código 
entre a multidão, mas que acabará descoberto 
quando, sob lupa, se revelar o trabalho no computador.

29.7.16

Obituário

Ali naquela estrada jaz o cadáver do encontro que 
não aconteceu, enquanto os carros continuam a descer
pelo alcatrão, a fazer pisca, a olhar quem vem lá, com 
destinos incertos e tantas vezes inseguros, mas nenhuma

preocupação. Logo ali, naquela janela que não faço ideia
qual seja, escondes-te tu e os teus óculos escuros, usados
para não ver o mundo que te saúda ou os poemas que 
nascem das rotundas mal plantadas por aí. Alguma vez 

te disseram que a arte nasce das coisas que não acontecem 
na vida real? Alguma vez te sorriram sem que nada quisessem 
de ti? Porque o mundo não é assim tão mau quando pomos 

finalmente as mãos na terra para deixar que o medo 
não tenha mais poder sobre nós ou as nossas vontades. 
Ali naquela estrada jaz o adeus ao que nunca aconteceu. 

Revolução

E se um dia abrires, finalmente, os olhos para
a revolução, vais saber que as ruas são livres
e os corpos se despem por inteiro entre as frases
que ficam por dizer nos lábios que não se beijam.

Porque se um dia acordares e conquistares o
teu direito a seres quem tu bem quiseres, é certo,
não te faltará o tempo nem o modo para ergueres
os braços e as mãos agarrando o mundo inteiro.

Pode ser de noite e no escuro nada vês ou pode
ser de tarde com o sol alto a cegar-te ou pode ser
de manhã com o espesso nevoeiro a encobrir-te.
Pode ser tudo, nada te pára, porque tu és revolução.

17.7.16

Chuva quente

Chegou a chover esta manhã, enquanto
os teus ouvidos ainda estalavam magoados
pelos decibéis exagerados da noite passada.
Com uma faca pouco afiada, eu tentava limpar

a pele até ao ponto de o sangue emergir por
entre os poros, irritado ao ponto de escorrer
e só depois transmitir aquela dor, insuportável
e fina, que me tolhia qualquer desejo de 

movimento. Chegou a chover, dizia, mas não sei 
se as minhas palavras chegavam até ti ou 
se a tarde inteira é apenas uma construção 

frágil que se vai desmoronando com o subir
do sol até ao topo da montanha para depois 
descer do lado onde a nossa vista não alcança. 

Névoa

Por aqueles dias escrever não era uma
inspiração, tal como a névoa caía feito
chuva sobre as cabeças dos veraneantes
confusos com a situação meteorológica

habitual naquele lugar. Também todas as
promessas de que aquele seria o último 
livro eram consideradas vãs, pois esta 
sede não se oferece a ciências nem a

crenças, esquece-se quando saciada para
regressar, brutal, quando seco transparece
o coração. Os pés sujos e negros pesavam

sobre uns chinelos baratos, marcas de pedras
assentando sobre a planta, território neutro
de uma luta que insistes em não compreender. 

14.7.16

Tudo dói

Tudo dói, Carolina, diz a avó à pequenina
e o último trago do café amargo encrava-se, 
vai comigo escadas rolantes abaixo, tropeça
em gente que passa, enrolando-se em mim no

caminho até ao carro. Tudo dói, diz a senhora, 
como quem o diz a toda a hora, a pequenina
encolhe os ombros, fica calada, tenta a custo
arrancar o papel do gelado que parecia ser

via verde para qualquer sofrimento. Tudo dói, 
a pequena comerá o gelado, eu acabo por me 
fazer à estrada e até podia dizer que a vida

segue o seu percurso, mas não segue, porque
ainda vai haver uma avó desencantada pronta
a prender as sinceras emoções da Carolina. 

13.7.16

Desenhar jardins

Desenhar jardins é combater o humano resistente
em nós, retirando-lhe o chão trabalhado de debaixo
dos pés para lhe impor relvas escorregadias, trilhos
de terra e pequenas poças depois da rega.

É procurar nesses recantos do mundo onde se vão
desenhando os pés de quem passa pelo relvado
porque o esquema labiríntico dos passeios se estende
em sentido contrário ao da nossa evolução.

Desenhar jardins deveria, assim, ser promovido como 
uma arma de guerra contra as evidências, um sonho
utópico de quem se recusa a ir por ali, querendo

sempre um pouco mais das coisas do que linhas retas, 
curvas adequadas ou poupança de meios. E nós, os
que ali vão passar, sem medo de sujar os sapatos.

Contracampo

Auguro um mundo onde se veja só com 
os olhos, para que cinematográfica se possa
tornar a vida, finalmente. Porque o aquilo que
se deixa ou passa a ver com a mediação do 

cérebro, acaba contaminado com a leve 
sensação de que aqui andamos apenas 
para nos magoarmos uns aos outros. Melhor, 
então, esperar essa hora em que a nossa 

cegueira não seja existencial, que se possa ver,
de todas as coisas, um e outro lado, sem que 
isso transforme aquilo que olhamos mas, sim, 

aquilo que temos em nós. E seria após o 
recebimento dessa dádiva que, crescidos e 
coerentes, poderíamos começar a pensar. 

6.7.16

Ao sol

Se agora gasto os dias a escrever poemas
tristes foi porque alguma vez passaste ao 
meu lado e eu sabendo que não me vias, 
porque os teus olhos fechados engolidos

pelo pensamento e os óculos cor de noite
te transportam para um lugar onde nenhuma
luz queimaria a tua alma pelo confronto com 
um pobre manipulador de palavras gastas.

Tu, que tens o voar dos pássaros no andar
e sobes a rua como quem desce de uma
conversa com uns quantos anjos caídos, 

não precisas de olhar para os lados para 
saberes quem és, sempre te entendes 
melhor no silêncio dos teus monólogos.

5.7.16

Trazer a poesia para a rua

Camaradas,

vou cometer a imprudência de falar de poesia numa sessão onde já falaram referências maiores desta arte. Penso, no entanto, que há uma questão de história e filosofia da ação que se impõe, apesar de eu me limitar a utilizar um rol de palavras que já aqui foram ditas.

O 25 de abril permitiu-nos viver a poesia na rua, exercendo a expressão total dos sonhos e ambições do povo português. No entanto, a situação compreendeu os perigos de deixar por aí à solta aquilo que não sabe viver preso. Logo se procedeu à execução de um plano de liquidação da poesia.

Primeiro, através das lógicas capitalistas da produção do lucro, fazendo do “Portugal país de poetas” um slogan de um país que não produzia, que não servia à modernidade.

Segundo, através da imposição, da parte das casas editoriais, do valor da venda sobre o valor da qualidade da obra.

Terceiro, atacando os próprios poetas, que se convenceram de que aquilo que faziam nada valia, imputando-lhes os custos de produção dos livros e respetivas margens de lucro.

Perante isto, os poetas fugiram das ruas, isolaram-se, passaram a viver em circuito fechado, longe da vista e dos ouvidos do povo (e, logo, do seu pensamento).

Algumas personagens foram, ainda assim, escolhidas para representar a “espécie em vias de extinção” nos festivais e comitivas de Estado, garantindo que a poesia voltava a ser, como antes, uma poesia amigável, confortável ao poder, pertença de “saraus” no Palácio de Belém.


É preciso que nós, enquanto comunistas, saibamos colocar um travão a esta realidade, defendendo os valores de abril e a ideia de que um outro país é possível!

Devemos trazer a poesia para a rua:
    Na nossa ação junto daqueles que vivem à nossa volta, que frequentam os mesmos locais de trabalho e de lazer.

    Na nossa intervenção nas associações, nas coletividades, nos grupos desportivos, nas instituições onde, como eleitos, temos essa obrigação de pensar e falar diferente dos outros.

    Na nossa opção de classe, com visão de futuro, ensinando e promovendo junto dos mais jovens aquilo que de mais poético há no nosso projeto - a liberdade.

É fundamental que o povo português saiba que é livre, sendo que isso só é possível através do exercício da poesia.

Entendam que cometi a imprudência de falar de poesia, falando de cultura, falando de trabalho, falando de vida, falando de mundo. É dessa forma integral que devemos viver, enquanto comunistas que somos.

É esse modelo que exige, da nossa parte, enquanto coletivo, a organização de experiências e a elaboração de planos de ação que possam ser estudados e postos em prática pelos camaradas que vivem e trabalham por todo o país.

É isso que espero que possa continuar a ser realizado nesta reunião, ficando bem expresso nas conclusões que daqui saírem.


Intervenção na Reunião Nacional sobre O Estado da Cultura em Portugal e as propostas do PCP, realizada em Lisboa, no dia 2 de julho de 2016. 

4.7.16

Mergulho

Eles entram água dentro ao fim da tarde
como se os sonhos não voltassem a nascer
a cada noite. Eles entram, destinados ao 
mergulho, como se o acordar não fosse
mais que uma promessa.

Quando os seus pés na areia se refrescam, 
destinados ao sorriso eles seguem água dentro. 
Não precisam de mensagens ou cidades, o seu 
mundo é garantido e os seus corpos resistiram 
à passagem da idade.

Eles entram, como quem sai ao encontro 
de um destino que não foge, nem se adianta, à
palavra que lhes falta, sem discurso ou realidade. 
Ao fim da tarde, mergulhados, água dentro, 
essa é a sua única verdade.

Asas dentro

Querer falar-te é, também, saber o ar
com que tu dizes cada palavra do dicionário.
Pudesse eu aprender o alfabeto dos 
teus pulmões e voaria com as asas que 
trazes dentro. 

Querer dizer-te é, também, procurar 
todas as letras que te nascem dos dedos.
Fosse eu viajante no tempo e encontraria
uma data qualquer que nos pudesse ter
no início do mundo.

Querer querer-te é ainda uma falta de
chão quando as pernas aprendem o andar.
Marcasse eu cada milímetro do caminho
e já o verão estaria seguro de não chover
dos olhos no calendário. 

Quadra popular

Quem vem da terra e à terra
quer voltar, dê dois passos no
caminho, junte-se comigo a 
cantar. É bonito ser-se inteiro

mesmo belo é ser-se cheio
de amigos que contar. Quem 
vem da terra e à terra quer
voltar, dê dois passos neste

estrado, aprenda também a
dançar. É bonito ter-se o jeito
mesmo belo é ter-se tudo
pr’o qu’ainda puder faltar. 

1.7.16

Agulha

Aquela agulha que te deixaram dentro,
depois da operação, esquecida mas
nunca ignorada, bem presente/pressente.

Aquela agulha a que te afeiçoaste tanto,
mesmo quando pica ou quase rasga cada 
órgão, a tua pele, ao ponto de já não viveres 

sem ela. 

Serviço da dívida

Ao serviço da dívida me têm aqueles
a quem nunca deixei dúvidas de ser
qualquer coisa mais do que eles próprios
poderiam ser.

Tal qual um carro desgovernado pelas
estradas onde caniços se alinham nas
bermas alimentados pela água das chuvas
e dos radiadores. 

Ao serviço da dúvida me ofereço um dia
atrás do outro perseguindo a dívida que 
contraio comigo mesmo e, ao que parece, 
nunca chega, nunca chego. 

30.6.16

Futuro

Por não querer um mundo igual 
todos os dias, invento-me novo
a cada manhã, descascando a 
pele de velhos ventos e tempestades.

De tudo pouco ou nada faço 
alarde, de silêncio melhor parece
o caminho percorrido, enquanto deixo
semente em cada centímetro de terra.

Por não querer um mundo o mesmo 
mundo novamente, faço-me de vez
sempre a fazer-me, abrindo bem os
olhos ao que houver de futuro lá para 
a frente.

29.6.16

Senhor Ministro

O Senhor Ministro não disse
tudo aquilo que acabou de dizer.
Na verdade, talvez tivesse dito
se o pudesse dizer sem que parecesse
que tinha mesmo dito. 
Mas, que fique bem registado, 
o Senhor Ministro não disse, 
mesmo que tenha dito, 
aquilo que acabou de dizer. 

21.6.16

Epístola à gente do futuro - II

Foi então que deixámos de caminhar
em direção ao que seria o nosso futuro
para passarmos a escutar aquilo
que nos faziam crer ser o nosso passado.

Deixámos de lamentar sortes e lotarias, 
nunca nos convenceram na aleatoriedade
das sensações deixadas pelas classes fortes, 
para nos entregarmos ao entendimento

profundo do que os tempos nos haviam
ensinado. E foi de tal forma pungente
a perceção de que as nossas dores tinham
já cura na entrega às marés de quem lutou

antes de nós, que os barcos puderam 
retomar seus rumos sem mais temer o mar. 

Epístola à gente do futuro - I

Naqueles dias as ruas ainda eram
o lugar de todos os confrontos da 
humanidade. Os salários baixando
ao sabor do aumento do desemprego

e outras injustiças profundas nos locais
de trabalho, o sem rumo da educação 
no país, os avisos e exasperações
dos desmandos da união estrangeira.

Mas, pela televisão, continuávamos a 
receber as instruções necessárias que
nos apontavam a importância de nos
mantermos fechados em casa, à

espera que a nossa mensagem criptada
mudasse o rumo das coisas do mundo.

16.6.16

Um elétrico chamado esperança

Esperava na estação um elétrico
chamado esperança. 
Não tinha destino, mas sabia,
para onde quer que fosse,
nunca poderia chegar. 

Segurava um balão de oxigénio
com um fio que asfixia. 
Parecia que nada lhe chegava 
a tocar, imune que era
a qualquer dor. 

14.6.16

Um empate

Já só somos felizes com o que soa a pouco. 
Um amigo que encontra emprego 
e se descobre nas mãos de um sádico chefe, 
uma solução precária para a saúde
de uma vítima de doença prolongada, 
o pequeno arranjo que mantém 
o carro a andar, mas sem esperanças. 

Podemos fazer a festa com um empate. 
Não esperamos muito mais da vida toda, 
essa certeza que não precisa de provas
de que o falhanço é seguro e inevitável. 

Já só somos felizes por não sermos infelizes.
Uma bola que quase entrou na nossa baliza
e foi salva com a mão pelo melhor jogador, 
a última cerveja da noite numa barraca
onde não existe um frigorífico, 
uma dor qualquer que não sabemos explicar
mas que ainda nos deixa andar em pé. 

13.6.16

Ladaínha

Anjo mudo que me fala
mesmo no silêncio deitado,
eu não rezo, nem desespero, 
pelo som das asas batendo, 
palavras feitas em toque, 
anjo quieto, ao meu lado. 

Anjo branco que encandeias
mesmo de escuro vestido, 
eu não clamo, mas encontro, 
o voo silente do teu corpo, 
desejos feitos tatuagens, 
anjo pele, ao meu lado. 

27.5.16

A prancha mais alta

Todos os anos ia a turma
em romaria até à Piscina
do Vimeiro a queimar a pele
para marcar entrada no verão.

Os mais afoitos subiam à
prancha mais alta para
ensaiar saltos e bombas
que espantavam as miúdas.

Tu davas aos braços a fingir
que sabias nadar entre as margens
onde o ainda tinhas pé,
medindo o esforço na invisibilidade.

Todos os anos ia a turma
em romaria nos autocarros
laranja e muitos sem saber
que bilhete comprar, onde sair.

Os mais afoitos cantavam e
gritavam para incómodo de
umas velhas a caminho de casa
depois da ida ao doutor.

Tu ficavas calado e calado ficaste
quando um dia mais tarde
subiste, temeroso, as escadas
até à prancha mais alta.

Foi já dentro de água que sentiste
que tanto tempo a ir ao fundo
tornava mais resistente
a vontade de respirar.

22.5.16

Inspeção Periódica

Meço mais a intensidade das palavras
do que a dos faróis médios
e os níveis do óleo
não me interessam tanto
como a maneira de dizer as mesmas coisas
com frases diferentes.

Aliás, os poemas já me levaram
muito mais longe
do que qualquer veículo automóvel,
mas nunca nenhum guarda republicano
me questionou acerca
da ficha da última inspeção poética.

E talvez devesse.

21.5.16

Homem bom

Se encontramos uma estrada
logo queremos que ela nos leve. 
Pouco importa que os lugares
sejam tão diferentes
se vividos de noite ou de dia.

Por exemplo, encontrei uma casa
abandonada num terreno retangular.
Tinha janelas, mas não tinha paredes.
Tinha ervas, lá dentro algumas folhas.

Se encontramos uma estrada
logo nos imaginamos a fazer moradas.
Pedem-nos cartões, identificam-te, 
tu sorris, encolhes os ombros, 
tanto te faz.

Por exemplo, encontrei um homem bom
e caminhei com ele pela cidade.
Tinha palavras dóceis, as suas histórias.
Tinha um bilhete só de ida para a morte.

Se encontramos uma estrada
logo nascem poemas pelos dedos.
Na boca recordas frutos vermelhos, 
mas na memória só tens gelo, 
algum gás. 

Por exemplo, sabes a que horas vais acordar
amanhã? E depois? Depois?
Há um sorriso desenhado em cada ausência. 
O mundo ainda nem está para começar. 

Medo de escorregar

Vestiste as roupas dos anos oitenta.
Perdido nos intervalos instrumentais
percebes que a primavera é só ausência,
gente a pensar em ti semanas.

Foste aos setenta trabalhar.
Olhaste o chão sem rasto de sangue
mas as paredes ainda falam 
e as árvores, hum hum, as árvores.

Chamam-te Fausto, meu capitão.
Não voltas ao lugar onde foste triste,
bem podes abraçar quem te apetecer.
A língua é uma ilusão perecível.

Dentro da tua cabeça és sempre o mesmo,
sabes todas as letras de cor.
Inventas palavras para rimar entrelinhas,
ficas para ali a dançar sozinho.

Tens dezoito anos, trinta e sete,
os teus amigos falam bem melhor que tu.
Sobes as escadas, cansas-te.
Desces as escadas, medo de escorregar.

19.5.16

O Caminho para casa - da ideia ao livro (em imagens)

A exposição em imagens.









Lembramos que se encontra aberta ao público na Biblioteca Municipal de Torres Vedras até 30 de junho, estando depois em elaboração a realização de exposições noutras localidades do país.

Problemas


O problema de quem escreve
é bem diferente
do problema de quem lê.

Quem escreve procura explicar
o que não existe
usando, para isso, a ferramenta
que a todos pertence. 

Quem lê aceita ou recusa
aquilo que existe
usando, para isso, a ferramenta
que ele próprio construiu. 

18.5.16

Os fracos vencerão

Passas uma tarde inteira a pensar
e isso não é coisa que vá mover o mundo
- convencem-te aqueles fazendo contas,
silenciosos, à exploração dos dias.

Quiseste, sim, ser como eles,
calçar sapatos apertados, vestir
camisas engomadas, subir elevadores
para o escritório, mas (havia um mas)
ainda assim, pensavas.

Por certo ainda duvidas.
Não entendes toda a força
resistindo nessa incapacidade
de encontrar a redenção
na passividade.

Passar uma tarde inteira a pensar
talvez seja mesmo o que faz mover o mundo
- e enquanto se fazem de fortes os medíocres,
sabes que os fracos vencerão.

10.5.16

Historiadores

Andarmos muito esquecidos
de tudo o que nos aconteceu
antes de sermos o que somos
parece agora normal.

Há quem me diga que é passado
e pouco importa o lá atrás.
Outros, por não serem ainda nascidos, 
que não teriam como o saber.

Por isso andamos esquecidos,
repetimos os mesmos erros, 
tomamos por brilhante novidade
aquilo que esteve sempre a acontecer.

Ignoramos, infelizes e descontentes, 
que dos livros não vêm apenas 
realidades distantes, que até a nossa
reles vida necessita de historiadores.

5.5.16

Espelho

Como quem se atira
de encontro a um espelho, 
aqui me surpreendo
na antecâmara da minha loucura.
Vai formosa
e insegura.

Eu recolho as palavras
quando nascem da tua boca
e colecciono cada gesto
inventado da tua ternura.
Tão selecta
e bem segura.

Sinto-lhe o calor
mas por chegar o verão,
confundo-me imprudente
aprendiz nesta ciência.
Que é formosa
e tão segura,

no final da inocência

4.5.16

De um livro aberto numa cadeira do hospital

De um livro aberto
numa cadeira do hospital
saem vozes em 
línguas estrangeiras. 

Entendo-as sem esforço algum.

São os olhos de um amigo
e as suas palavras dóceis,
estranho hábito de quem se gosta
sem nunca precisar de confissão.

De um livro aberto
numa cadeira do hospital, 
viagens no tempo e 
roupas confortáveis. 

Mergulho em mim sem receio.

E ser eu ou ele quase
nada importa ao poema, 
hábil certeza de quem passa

sem precisar de ver os passos no chão. 

3.5.16

Corredores

Era dia do 
santo dos heróis humildes, 
mas as memórias ainda
rasgavam músculos cá dentro.

Eu a pensar
nos efeitos que as palavras
têm no cérebro e na boca, 
metal amargo feito sangue.

Era dia do
santo dos ricos arrependidos,
mas os que sentem fome
desejavam-lhes os lugares.

Eu a pensar 
nas dores de crescimento,
nos efeitos provocados
sobre a coluna vertebral.

Era um dia
novo e singular. 
Um dia ainda
por encontrar. 

28.4.16

Dilúvio

Depois do dilúvio, 
ficaram os corpos 
marcados pelo chão.

As peças soltas
da maquinaria, 
a falta de remendo 
do tempo passado.

Podemos esperar
o regresso da poeira, 
apenas para a ver
assentar. 

Como podemos
pedir mais chuva
aos deuses
que não nos escutam.

Depois do dilúvio 
e da destruição, 

nada mais importa. 

25.4.16

Dia

Não fosse o 25 de Abril,
hoje era vinte e cinco de abril 
e aquilo que imagino, distante, 
nestas ruas, seria peso
sobre a cabeça rapada
que transporto.

Eu morto ou escorraçado 
numa rua que me é estrangeira
onde estranho também eu seria, 
infeliz combatente
de uma pátria ignorante, 
desmerecida. 

Não fosse, portanto, a Coragem, 
daqueles que souberam dizer
o sim e o não em contraponto, 
e tudo em nós seria minúsculo, 
apagado e descrente, 

como num outro dia qualquer. 

20.4.16

O caminho para casa - da ideia ao livro

No próximo dia 25 de abril de 2016, realiza-se a inauguração do novo espaço da Biblioteca Municipal de Torres Vedras. Na sua sala de exposições, será apresentada "O caminho para casa - da ideia ao livro", uma mostra que reúne documentação do processo de construção do livro "Pedro Gosta", de autoria de Luís Filipe Cristóvão e Miguel Carvalho, publicado pela Oficina Raquel. 

A simbologia desta data, que marca os quarenta e dois anos da Revolução dos Cravos em Portugal, encerra um percurso que não deixa de estar representado neste livro. Deste uma ideia, poética, sobre o que poderia ser um dia de uma criança, até à transformação dessa história numa chamada ao confronto com a realidade, das pessoas, das vilas e cidades, do mundo inteiro. 

Também não poderia imaginar um melhor lugar para festejar a Liberdade do que uma biblioteca, pelo espaço que ela nos abre para conhecer, entender e modificar o mundo. Por isso espero que esta caminhada feita pelo "Pedro" possa continuar, desbravando novos entendimentos e ajudando outros, como eu, a encontrar a sua casa. 








Texto de apresentação da exposição "O caminho para casa - da ideia ao livro"

O Pedro nasceu só feito de poesia. Tudo o que escrevo vai tentar buscar um referente qualquer real. Tudo o que escrevo violenta esse real inventando-lhe uma nova face. O que eu faço é operar sobre o real, em busca de um ficcional que satisfaça o ponto de chegada de qualquer trabalho literário: o ser poético.

Foi numa altura em que tentava viver nesse espaço radical de transformar tudo em acontecimento simulado. Encontrava algum conforto nessa simulação, como se vivesse uma realidade paralela onde encontrava as respostas que procurava para as minhas questões particulares. Caminhava assim em sentido contrário, uma vez alcançado efeito poético. Do real para a poesia, da poesia para a real. 

O texto em si não me recordo de ter sido trabalhoso. As palavras sempre me as senti poucas e limitadas. Foi sempre no ritmo que procurei dar um certo toque pessoal ao que contava. Já não sei quem me disse que eu falava como escrevo. É uma formulação curiosa, porque me imagina a escrever, primeiro, e só depois a falar. Também é assim que me vejo. Mesmo sem escrever, o texto acontece-me na cabeça. E o que sei é já um fenómeno de intensa revisão em busca de uma musica para o dizer. 

Não é, portanto, tanto o que se conta como a forma encontrada para o contar. E também aí o caminho tem sido algo ímpar. De começar a tentar entender os adultos para descobrir nas crianças algum tipo de resposta. Do querer crescer para entender que, lá chegado, não há melhor forma de ver as coisas do que com a informada inocência da infância. Sempre valorizei bastante as primeiras impressões, ou intuições, embora hoje desconfie de que esse é um atalho para aceitar a minha insegurança perante as minhas próprias opções. 

O livro como existe só acontece, no entanto, com os primeiros elementos enviados pelo Miguel e, sobretudo, com as camadas que ele encontrou descritas no texto. Digo que ele encontrou, uma vez mais, porque eu não as via como elas estavam lá. Via apenas a poesia onde estava um real. Um real forte, militante, participativo. Talvez tenha sido essa ajuda do Miguel quem me puxou a mim. 

Não preciso, portanto, de procurar na poesia uma resposta para o real. Aquilo que eu entendo hoje é que real e poesia coabitam de forma pacífica em todas as coisas, precisando nós, apenas, de um olhar atento que nos faça entender a fronteira de cada uma delas. A melhor resposta, no entanto, é a que nos permite o entendimento da fronteira, não como uma zona de separação, mas como uma zona de eterna festa dos sentidos. 

Escrever este texto é o meu último contributo para o que é este livro. Escrevo-o, agora de forma consciente, para o seu futuro de desconstrução. Porque para fazer livros continuaremos a simular poesia e realidade. Porque para nos entendermos a nós próprios, temos que reviver esses efeitos até que eles se gastem no nosso próprio corpo. Tudo o resto, é matéria de bibliotecas. 

O caminho para casa - da ideia ao livro
Exposição a partir do livro "Pedro Gosta"
de Luís Filipe Cristóvão e Miguel Carvalho

Biblioteca Municipal de Torres Vedras
de 25 de abril a 30 de junho de 2016

17.4.16

Sozinho ao sol

Nascido nos setentas
cultivado nos noventas
e ainda te espantas
com as muitas cores
do mar.

4.4.16

(Mais uma) Última hora

Tudo por menos da sua metade
anunciado com o dobro do tamanho
da importância devida.

Pois quanto mais o mundo treme
com o choque daquilo que pensa descobrir
melhor se caminha pelos labirintos.

Nunca me ensinaram a ser cínico.
Foi sempre o exagero com que soa a "verdade"
que me fez duvidar de ainda mais coisas.

Até de mim mesmo.

1.4.16

Os doze trabalhos do linho

Os doze trabalhos do linho
não são
os doze trabalhos de Hércules.

Semear, arrancar, ripar, enriar,
secar, malhar, macerar, espadelar,
assedar, fiar, barrelar, dobrar.

Oxalá saísse das minhas penitências
tão limpo
quanto a toalha de linho sobre mesa.

31.3.16

Dor de cabeça

Perguntaram-te se te dóia a cabeça
[não te dóia a cabeça],
mas a impressão cresceu a tarde inteira,
prostraste-te no sofá, desististe do dia,
porque te perguntaram [dói?]
tu disseste não
[e agora a impressão é quase dor]

Querias ter dito
talvez,
não sei
[mas ninguém responde não sei
a essa pergunta]

28.3.16

Falso nove

Os olhos mais nas botas que na bola
quase contrariado por tudo e todos
os que gritavam em redor do campo

da escola, toda em peso a sonhar campeonatos
que para ele pouco ou nada importavam.
Aquela ausência toda quase o tempo inteiro

um aplauso abafado, assobios da bancada,
talvez até alguns insultos da claque da sua turma,
a incompreensão habitual reservada aos que se
                                                         [escondem.

E então, no meio de tudo isso,
numa tarde de quarta-feira pouco europeia
entre dois centrais atrapalhados pelo sol,

ele surgia com um chuto bem maior
que qualquer verso, oferecendo algum sentido
à velha camisola nove.

21.3.16

21 de março

Eu quero um dia
como os outros.

Onde o fundamental
não seja o dia.

Apenas a

poesia. 

9.3.16

Chiaroscuro

Uma agente da autoridade registou o evento
do carro estacionado sobre a passadeira,
deixando a multa exposta no pára-brisas.

Quando descia a rua, olhando o telemóvel,
a mesma agente sorria como uma menina
encantada pela mensagem do seu namorado.

20.2.16

Janela aberta

É cinza 
a janela aberta,
coração gelado
da espera,
onde teus lábios
se desencontram 

dos meus. 

15.2.16

Alerta amarelo

Os alertas amarelos são melancólicos
quando chegam com a notícia
de não teres lido as minhas cartas.

10.2.16

1.

Enquanto outros partem em viagem
resistimos como as pedras deste mar - 
eternas e decididas a fazer do ir

uma milésima forma de ficar. 

27.1.16

Sexto andar

Tinha cara de desconfiada, mas podia ser só calada, ou então não se interessar minimamente por ti. Talvez fosses tu que pensasses demais. Cruzavam-se diariamente no corredor do prédio em que ambos trabalhavam. Ela a caminho do sexto andar - umas duas vezes subiram juntos no elevador e tinhas registado o andar dela -, tu entre o quarto e o quinto andar. Talvez não fosse muito normal que tu estivesses tantas vezes num corredor onde nada tinhas a fazer, mas fechavas-te na casa-de-banho do andar só para que o segurança não se perguntasse porque andavas para trás e para frente sem entrar em porta alguma.

Ela tinha cara de desconfiada, mas era uma desconfiada muito bonita. Um dia ainda haverias de lhe dar os bons dias ou boas tardes, tentar perceber como seria a voz dela, se ela já alguma vez tivesse reparado em ti. Tu ias a pé do quinto para o sexto andar - essa coisa de não fumar no varandim de entrada do prédio roubava-te privilégios, já tentaras ficar uma ou outra vez por ali à conversa, mas o teu diretor perguntara-te que, se o cigarro estava a acabado, podias subir (e sim, ele sabia que não fumavas) - quando te cruzaste com ela nas escadas. Ela pareceu surpreendida. Achava que trabalhavas no sexto andar.

25.1.16

As chaves

Em cima da mesa ficaram esquecidas as chaves de casa. Não sabes bem a que horas deste por isso, talvez à hora do almoço, quando procuraste a carteira no fundo da mala e não ouviste o tilintar habitual. Estavas longe de casa e não sabias bem a quem ligar ainda durante o dia. Quando chegasses à tua porta o mais provável era também já ser tarde demais para encontrar quem te pudesse ajudar para entrar em casa.

Em cima da mesa ficaram esquecidas as chaves de casa. A tua casa, aquela pela qual te punhas a caminho de um escritório a mais de trinta quilómetros para a conseguir manter. Tinhas demorado muito tempo até conseguir sair de casa dos teus pais, farta que estavas de ter a vida assim pendurada nas opiniões de quem achava que te estava a criar, mesmo quando já caminhavas para os vinte e sete anos. Telefonaste ao teu antigo namorado. Perguntaste-lhe "queres jantar hoje"? Ele disse que sim.

14.1.16

Palavras

Deixa de temer as palavras, ou a sua incongruência natural, deixa de procurar nelas uma resposta para os teus males concretos. A resposta está sempre na desorganização, algo caótica, dos elementos. O esforço para encobrir toda e qualquer filosofia, alguém que imagine que o mundo é apenas ação e nunca teoria, não é apenas inútil, é também causador da cegueira das sensações. Deixa de temer as palavras, sê livre, lê. A resposta está lá, sempre esteve lá, escondida dentro de ti.

13.1.16

Equipas

De seres individualistas estão as equipas cheias. Pensas nisto e sorris. Na tua cabeça, as coisas acontecem sempre sem acasos, porque todas as surpresas são naturais. Argumentas pouco pela solidez dos factos, sabes bem que estes se cambiam em todos os mercados, a qualquer hora do globo. Olhas assim o coletivo como uma soma improvável de soluções para os problemas que não deixam de te surgir. A soma improvável que, no final de contas, é sempre superior à conjugação das suas partes. Sorris. O caminho certo.

12.1.16

Pedras

Subiam das pedras os odores do caminho que ainda te faltava fazer. Nos pés ficava marcada a inconstância do lugar, pouco fixo que estava, contigo assim, a adivinhar. Subiam das pedras, também, as humidades frias de uma noite inteira a olhar vazios, a calcular medidas, a inventar sobriedades. Mas ainda assim te levantavas, ainda assim seguias. Pelas pedras.

11.1.16

Línguas estrangeiras

De tempos a tempos, aquela vontade de aprender línguas estrangeiras. Por causa de uma música, de um livro, de uma notícia. Aquela vontade de deslimitar o cérebro perante os signos e sinais de uma realidade que te é alheia. Ou será mesmo? Acaso não acabarias por te encontrar mais cómodo e confortável se aprendesses uma nova língua, uma nova forma de organizar o mundo. De tempos a tempos, aquela vontade de aprender a ser o mesmo de outra maneira.

7.1.16

Segurança

Sempre preferi escrever sem destinatário, o meu leitor era leitor nenhum. Aliás, deixei de escrever quando percebi que me liam - e se me lêem, lêem-me mal - e fantasiavam por cima de coisas que eu não tinha dito. Tudo bem, se não me levassem junto. Guarda-te na sombra, desconhecido. É assim que nos mantemos em segurança.

6.1.16

Tento

Se tento não olhar-te nos olhos é porque sei como te olhar nos olhos - quando me esqueço ou descontrolo, aí estou eu, à tua porta, pronto para te magoar com carinhos e abraços. Se tento não dizer-te palavra é porque sei que palavra te dizer - a boca aberta, a língua em fogo, o corpo destacando-se da alma para melhor a absorver. Se tento é porque não tento. Se não tento, estou tentado. Tentado a tentar.

5.1.16

Terrinha

A caminho da terrinha em cima de uma música folclórica, destoando notas, contando dinheiro, um barbudo que fica sempre mal nas fotografias. A caminho, a caminha, coisas próximas de tão afastadas - aquele tempo em que eu simplesmente não dormia fora de casa, ainda que a casa não fosse minha, ainda que nem me sentisse bem nela, aquele tempo - e pensar que acelerei em estradas onde agora nascem filhos de pais que não sou eu. A música, ainda a música, a repetir-se.

4.1.16

Tempos livres

Corrompo-me um ano mais, deslizando lentamente pelas páginas em branco de um qualquer ficheiro a que chamo livro no futuro. Aprendi a conjugar no inexistente, mas condicionam-me as poucas palavras que sei. Repito-me? A toda a hora, nessa busca de estar sempre ocupado com alguma coisa que não me ocupe realmente. O diabo está, de facto, nos tempos livres.